Alguns episódios nos últimos meses me fazem acreditar que a literatura infantojuvenil vem adquirindo um respeito maior no meio da crítica literária. Uma mudança realizada a passos de formiguinha, é bem verdade, mas, ainda assim, em andamento. - Pernambuco Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado Publicado em: Pernambuco Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado
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Alguns episódios nos últimos meses me fazem acreditar que a literatura infantojuvenil vem adquirindo um respeito maior no meio da crítica literária. Uma mudança realizada a passos de formiguinha, é bem verdade, mas, ainda assim, em andamento. Chamou-me atenção, por exemplo, a criação de um espaço específico para apreciações destas obras no jornal Rascunho, um dos mais conhecidos suplementos literários do país, que levou 12 anos para criar sua seção Rabisco. A razão desta atenção crítica, no entanto, não é gratuita, tampouco indica um despertar espontâneo dos resenhistas. Há, por um lado, um crescente exercício teórico sobre esta produção sendo realizado no âmbito acadêmico, por outro, o surgimento ou a consolidação de várias editoras infantojuvenis — ou com catálogo nesta categoria — de real compromisso estético com seu público. É nesse contexto que surge a Pulo do Gato, novo selo que vem lançando tanto títulos para leitores em formação, quanto para os formadores de leitores.
Em um ano de vida, a pequena editora já conquistou dois selos Altamente Recomendáveis pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, além de ter entrado em algumas listas de revistas especializadas. A iniciativa de criação foi acalentada durante anos por Márcia Leite e Leonardo Chianca, casal de proprietários que traz longa experiência na área. Ambos são escritores e editores, sócios do estúdio editorial Jogo de Amarelinha. Esta empresa, no entanto, presta serviços para outras editoras, enquanto a Pulo do Gato é um projeto pessoal e independente. O desejo já antigo era, justamente, poder publicar livros criteriosamente selecionados. “Nossa editora tem uma intenção muito clara na definição dos fundamentos de nosso catálogo (que ainda está engatinhando): a construção de uma coleção pautada na qualidade literária e gráfico-visual. Dedicamo-nos à seleção e produção de livros especiais, em que texto e imagem dialogam entre si. Temos uma ideia muito pretensiosa: queremos contribuir para a formação de futuros leitores literários”, comenta Márcia.
A autora e educadora sabe que este não é um campo fácil para se legitimar artisticamente, pois, como apontei no início, existe uma resistência da crítica para fazer a apreciação de obras que travam diálogo com as crianças. “Quantos veículos midiáticos se dedicam a investir na divulgação da literatura para crianças e jovens? Quantos deles reservam cadernos,páginas ou até mesmo pequenos espaços para matérias sobre literatura destinada aos leitores em formação? Até mesmo a ‘literatura adulta "não recebe o holofote que deveria se comparada ao espaço dedicado à indústria cinematográfica”, observa. De certa forma, um comportamento associado ao altíssimo número de publicações comprometidas com os currículos disciplinares, com temas definidos, com uma pedagogia de valores e conteúdos. Esta indústria do livro infantil que quase não oferece o exercício de liberdade da arte ao seu leitor injetou na crítica certa rejeição generalista. O que resta às editoras sérias, diante deste quadro, é um grande desafio.
No caso da Pulo do Gato, o que percebemos, a princípio, é uma aposta em autores estrangeiros pouco conhecidos no país. “Optamos por iniciar nosso catálogo com obras traduzidas de inegável qualidade e que se afinam ao conceito que desejamos imprimir ao nosso catálogo (o que não quer dizer que não é possível conseguirmos o mesmo objetivo com autores e ilustradores brasileiros). Foi apenas uma decisão inaugural de começarmos com títulos de editoras estrangeiras, às quais admiramos pelo cuidado,qualidade e literariedade de suas produções. A próxima etapa é cuidar para que consigamos publicar livros de autores nacionais com a mesma excelência”, explica a editora. Dois títulos da atual coleção já se destacam pelas ilustrações primorosas, são eles: Mari e as coisas da vida e A mulher gigante da casa 88. Escritos pelos belgas Tine Mortier e Geert De Kockere, respectivamente, ambos trazem imagens criadas pela ilustradora Kaatje Vermeire, que investe na técnica de colagem e abusa dos efeitos de textura.
Uma obra que talvez seja um pouco mais familiar aos pais leitores é Juca e Chico– História de dois meninos em sete travessuras. Escrito em 1865 por Wilhelm Busch, com título original Max and Moritz, o clássico foi traduzido no Brasil por Olavo Bilac e narra em versos as estripulias de dois garotos de índole controversa. Semelhante à ambiguidade existente em Pinóquio, o livro dispensa a representação politicamente correta da infância, mostrando de forma bem-humorada como os princípios éticos ainda estão frouxos nesta fase da vida, mas tendo, como toda a literatura infantojuvenil alemã do século 19, certa inclinação normativa. Este aspecto, no entanto, não se sobrepõe à qualidade literária do texto e a própria pedagogia do castigo apresentada pelo livro seria olhada de forma crítica por qualquer criança de hoje em dia.
Agora, se você é ou tem um pai não leitor, o ideal é começar pelo irônico Como ensinar seus pais a gostarem de livros para crianças, do francês Alain Serres. O breve livrinho ilustrado funciona como crítica aos pais que, por motivos diversos, não partilham o momento de leitura com os filhos ou, antes, não contam histórias para eles enquanto estes ainda não dominam o idioma. Há crítica aos céticos (“que acham que as fadas nunca existiram e nunca existirão...”), aos demasiadamente sérios (“que acha que livros para crianças só contam histórias malucas...”), aos superprotetores (“tremem só de pensar que podem encontrar a palavra MORTE em algum livro seu...”), aos pouco familiarizados com os versos (“acreditam que a poesia não é fácil de entender...”) e aos moralistas (“preocupados em dar de cara, sem nenhum aviso, com algum pipi...”).
No rastro dos livros que já estão disponíveis nas prateleiras das livrarias, como os que acabei de citar, estão previstos mais alguns lançamentos para este ano. Márcia, no entanto, é bastante lúcida quanto às limitações de uma editora de pequeno porte: “Além dos títulos já publicados, temos mais dois em gráfica que sairão este ano. Existem ainda mais de 20 livros de literatura para crianças e quatro ou cinco para jovens leitores em produção. Estabelecemos uma meta de acordo com o tamanho de nossas pernas, e vamos imprimi-los aos poucos, uma média de 12 títulos por ano”, adianta.
GATO LETRADO
Tão necessária quanto a formação de leitores literários é a formação dos formadores de leitores. A larga experiência em educação, juntamente à carreira artística, fez com que Márcia Leite estivesse sempre alerta às demandas bibliográficas deste meio. Formada em Literatura e Língua Portuguesa pela PUC-SP, ela atua na área educacional desde 1981 e agora também contribui através dos textos publicados pela coleção Gato Letrado, editada pela Pulo do Gato. “Tenho um compromisso pessoal com a formação de leitores, sou educadora há quase 30 anos. Acreditamos piamente que sem formação de formadores de leitores não há leitores. A coleção Gato Letrado foi a forma que encontramos, no mercado editorial, de assumirmos nosso compromisso, apresentando e publicando títulos inéditos no Brasil sobre temas relacionados à cultura da escrita de alguns dos mais atuantes e reconhecidos pensadores contemporâneos na área”, explica.
A coleção promove reflexões sobre a importância da leitura e da literatura, além de incentivar ações que favoreçam o trabalho de formação de leitores literários, sobretudo crianças e jovens. Destinados a professores, bibliotecários, escritores, editores, pesquisadores e, por que não, pais, a Gato Letrado já conta com seis livros, sendo dois das escritoras colombianas Silvia Castrillón (O direito de ler e de escrever) e Yolanda Reyes (Ler e brincar, tecer e cantar), dois das argentinas María Teresa Andruetto (Por uma literatura sem adjetivos) e Cecilia Bajour (Ouvir nas entrelinhas), um do mexicano Daniel Goldin (Os dias e os livros) e um da brasileira Marina Colasanti (Como se fizesse um cavalo).
Com previsão de mais três lançamentos para o próximo ano, a Gato Letrado traz textos de fácil apreensão e visa a contribuir aos meios educativos, onde transmitir o gosto pela produção literária nem sempre tem sido uma tarefa bem-sucedida. Levando em conta, propriamente, as instituições de ensino, Márcia divide conosco a leitura que faz do trabalho dos professores a partir da sua vasta experiência: “Creio que quando temos como meta a formação de leitores literários na escola, não há cilada maior que tentar seguir receitas ou critérios fechados — como apenas a classificação por temas, por tipologias, por idade, por níveis de leitura, por ensino de valores, por afinidade com os conteúdos. O melhor e mais honesto critério que conheço é o da seleção por qualidade literária e artística, o melhor livro é aquele cujo texto está a serviço unicamente da própria literatura, da inventividade, da possibilidade de falar a cada leitor de um modo particular”, defende. Sua impressão final sobre a escola como espaço de estímulo é, felizmente, positiva: “Acho que a escola pode, sim, formar leitores literários quando existe respeito e compromisso com a literatura durante a seleção de livros, interesse em promover a formação do leitor e, principalmente, a presença de um mediador disposto a compartilhar leituras, a escutar a voz do livro e dos leitores, a provocar, com brilho nos olhos, desejo pelos livros que sugere a seus alunos”, conclui.
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