Para comer com os olhos - Revista Emília - Março/2014 Publicado em: Revista Emília - Março de 2014
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O Leão Papa-desenhos
Para comer com os olhos
POR BÁRBARA FRANCELI PASSOS
A leitura de um livro já começa na capa. E estar diante de um livro ilustrado demanda dos leitores, sobretudo dos mais experientes, o uso de estratégias, muitas vezes, bastante elaboradas para a produção de sentidos múltiplos que a “conversa” entre livro e leitor pode favorecer. Nessa direção, Sophie Van der Linden destaca: “Ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e imagem. É isso e muito mais. Ler um livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato, de enquadramentos, de relação entre guardas e seu conteúdo; é também associar representações, optar por uma ordem de leitura no espaço e na página, afinar a poesia do texto com a poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma em relação à outra...”. Essa premissa dialoga intimamente com os estímulos que as imagens apresentadas na capa de “O leão Papa-desenho” provocam nos leitores. E, num rápido, mas intenso movimento de busca e caça de sentidos, podemos ser fisgados pelo colorido da juba do leão, pela troca de olhares entre o animal e o garotinho, pela postura do menino em cima da cauda do animal, e pela relação que eles parecem estabelecer, a partir dessa interação “face a face”.
Seguindo adiante, os leitores podem ser surpreendidos, ao observarem a quarta capa. No espaço dedicado aos conhecidos resumos dos livros, há a seguinte declaração: “Não há nada que me agrade mais que um desenho feito por uma criança!”, disse o Leão Papa-desenhos.
Segundo Magda Soares, ler um texto é instaurar uma situação discursiva. O que também significa dizer que, desde a capa, essa situação discursiva é inaugurada e, com o livro nas mãos, os leitores começam a integrar o mundo do autor e um rico processo de descobertas, que não tem “receita pronta” para acontecer. Por isso, ao refletir a respeito da capa e quarta capa, do título, das cores e formas dos desenhos, e da fala da personagem, os leitores podem ampliar seus diálogos com o livro e elaborar, por exemplo, as seguintes perguntas: “Um leão que papa desenhos? Como isso acontece? Como podemos decifrar o “enigma” que envolve esse estranho hábito do leão?
E assim, vai surgindo um instigante movimento dos leitores que, em busca de compreensão para suas possíveis perguntas, começam a mergulhar na narrativa.
Uma vez movimentando a capa, nas páginas de frontispício, nós, leitores, nos deparamos com um grande e colorido leão, dono de um olhar curioso. O felino aparece posicionado sobre uma cidade, e, no canto superior direito, encontramos um menino, “concluindo” o desenho desse leão. Ops! A cauda foi cortada pelo limite da página! O que essa imagem nos comunica? Seria o leão uma criação desse garotinho? A imagem da cauda, recortada do lado direito, poderia ser uma maneira de impulsionar o leitor a virar a próxima página e seguir buscando o que falta? Afinal, qual a relação entre o animal e o garoto e o que isso pode significar?
Dando continuidade a leitura do livro, acompanhamos o narrador da história que apresenta, utilizando-se de linguagem informal e requintes de bom humor, os acontecimentos que giram em torno da relação existente entre as personagens. Em muitos momentos, as falas das personagens são apresentadas em discurso indireto, validando a posição onisciente do narrador de maneira bastante divertida. Nesse contexto, estamos diante de uma narrativa consistente e envolvente.
A história segue, apresentando aos leitores um leão faminto e exigente que vive numa cidade. Como a fera se alimenta de desenhos de crianças, os pais, com medo de terem os seus filhos devorados, obrigam-nos a produzirem, diariamente, muitos desenhos para o felino.
“Já no café da manhã, todas as crianças ficavam na frente de um monte de folhas brancas e só podiam sair da mesa quando tivessem rabiscado pelo menos dez delas.”
“Muitas vezes as crianças nem podiam mostrar os seus desenhos aos amigos, porque o leão já os tinha comido.”
“De tanto desenhar, porém, as crianças iam ficando cada vez mais cansadas. E o leão protestava: “Hoje os desenhos estão piores do que ontem”... e os de ontem já não eram grande coisa! Será que vocês pediram ajuda a seus pais?”.
Diante da situação imposta pelo leão, um menino cria coragem e resolve procurá-lo para resolver o problema. A postura da criança diante do leão é corajosa. Dialogando de modo inteligente e criativo, o garoto convence o animal a produzir e se alimentar dos seus próprios desenhos. Nesse momento da narrativa, o leitor é novamente surpreendido pela postura do leão. O animal experimenta a sua arte e a avalia como “desagradável”, contudo, disfarça e tenta manter a sua reputação. Nesse trecho, a ilustração destaca, de maneira humorada, a condição do leão.
Do ponto de vista da organização interna das páginas, tudo pode envolver o leitor. Os textos são dispostos nas páginas ocupando diferentes posições. A tipografia também aparece com tamanhos e letras diferentes para distinguir a fala do leão, do menino, e do narrador.
As imagens são apresentadas em páginas duplas, com traços leves, beleza e com um colorido poético carregado de significados. As crianças, por exemplo, são representadas com grafite e sem cor, enquanto o cenário e o leão são coloridos por meio de diferentes técnicas. Há uma preciosa articulação entre o texto verbal e as imagens.
“Sempre que encontrava o leão, o menino o ajudava a pintar e lhe dava um dos seus desenhos de presente. Mas só os mais feios para que o leão não voltasse a sentir vontade de comer somente os desenhos das crianças.”
Concluindo, por enquanto...
“Por que dar fim a histórias?”, pergunta-se no primeiro verso do poema “Fim” (1968), Carlos Drummond de Andrade. Essa indagação provoca em nós, leitores, uma importante reflexão, uma vez que “o fim da história, faz cessar o fluxo de expectativas que a narrativa promete aos seus leitores. Frustradas, exacerbadas ou satisfeitas – mas sempre renovadas ao longo da leitura –, as expectativas empurram o leitor até que se chegue à última página” (Lajolo, 2001).
O livro “O Leão Papa-desenhos” vai além da apresentação de um interessante diálogo entre um leão e um menino e sugere um novo convite aos leitores: despediremo-nos do leão que papa desenhos ou daremos continuidade a sua história em nossas memórias leitoras? Terá mesmo um fim a história desse curioso animal e do garoto, seu companheiro de cenas e capítulos?
As falas e ações dessas e de outras personagens propõem novas perguntas: o que pode significar metaforicamente esse leão? Quais os possíveis significados implícitos das imagens que se integram ao caminhar das personagens na história? Quais representações podemos atribuir à postura dos adultos na história e ao hábito do leão? E o papel desempenhado pelas crianças? Quais sentidos produzem os leitores, quando descobrem as nuances do movimento que os olhos podem fazer ao observarem as imagens?
Não precisamos necessariamente encontrar respostas para todas estas questões. O que, de fato, pode ser relevante é experimentar, como leitores, os encontros e reencontros que a leitura nos permite vivenciar. Afinal, um grande livro não é aquele que, entre outros aspectos, nos questiona, incomoda, faz rir, chorar?... Um bom livro não é aquele que nos faz ler a vida? Cabe aos leitores estabelecerem ou não o fim dessa envolvente história. Eis, então, o convite para esse grande desafio: assim como leão que papa desenhos, sejamos também aqueles que “papam” as belíssimas ilustrações e a linguagem inteligente e bem humorada deste livro genial, que estimula o desfrute estético, além de sugerir “novas maneiras” de experimentar sentimentos e sensações característicos daqueles que não costumam dar “fim” ao movimento antropofágico da leitura dos livros!
Bárbara Franceli Passos é pedagoga, professora de referência formadora do 2º ano do ensino fundamental 1 da Escola da Vila e também atua no Centro de Formação da Escola da Vila.
Bibliografia
Sophie Van der Linden, Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Coscnaif , 2011, p.8 e 9. Renata Junqueira de Souza (org.), Caminhos para a formação do leitor. 1. ed. São Paulo: DCl, 2004. Magda Soares, Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica 2005.
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