O título, A mulher gigante da casa 88, porta de entrada para esta obra de Geert De Kockere – autor – e Kaatje Vermaine – ilustradora, traz um aumentativo que chama atenção. Se no título a palavra gigante se põe, a cada trecho do texto se impõe, se agiganta a cada passo do pequeno personagem – “o menino”, como o trata o narrador. - Revista Emília Publicado em: Revista Emília - Maio de 2013
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O título, A mulher gigante da casa 88, porta de entrada para esta obra de Geert De Kockere – autor – e Kaatje Vermaine – ilustradora, traz um aumentativo que chama atenção. Se no título a palavra gigante se põe, a cada trecho do texto se impõe, se agiganta a cada passo do pequeno personagem – “o menino”, como o trata o narrador. A imagem do gigante, que tanto figura em narrativas literárias e no imaginário infantil, é reiterada conforme a linguagem informa sobre as fantasias do protagonista. Porque o menino deposita temor e mistério na figura de uma segunda personagem: uma senhora gigante: “‘Aposto que ela come criancinhas’, pensava o menino”. (p.7)
E assim se inicia o jogo que enlaça o leitor. Este, caminha junto com o temor do personagem expresso em linguagem literária, abusando de aumentativos, hipérboles, gradações e paralelismos. A história se inicia: “Vivia na cidade uma certa mulher. Uma mulher enorme. Um gigante de mulher”(p.7). A imagem da grandeza impera também em objetos e nos escondidos dos espaços da narrativa: “Para ter certeza que a mulher não estava na varanda. Com seu guarda-chuva enorme de grande. E sua grande, enorme rede-de-catar-criancinhas”; “era uma casa enorme”, “alta e grandona e de dar medo” (p.8).
No texto figura uma semântica expressa em aumentativos e vocábulos intensos, como é intensa a emoção do personagem: “abominável”, “casacões grossos”, “saias folgadonas”, “ela andava... como um tanque de guerra”. Os segmentos linguísticos e muitas frases curtas corporificam as ações e sensações do menino por toda a obra. O leitor atentará sobre isso de modo exemplar no segundo parágrafo da página 20: “O menino foi andando devagar para casa. Na mesma direção em que morava a mulher. Foi sendo levado pelas próprias pernas. Esticou o pescoço na esquina, com cuidado. (...) Nenhum guarda-chuva. Nada se mexia na varanda. Nem por trás da cortina da janela, ao lado da varanda”.
As frases curtas tecem o passo a passo do personagem, que observa, espiona, avança e recua, com olhar que se desloca para ver a mulher, coisas e seres que habitam a casa 88. São muitas as frestas e janelas por sob as quais seu olhar se debruça: É “pela cortininha, atrás do vidro da janela fechada” e “pelas cortinas que às vezes esvoaçavam para fora” que ele a vê. E na cidade, “... o menino se escondia atrás de um poste. Ou dobrava uma esquina”; “Certa vez, ele a viu entrando em casa. Com a bolsa gigante e cheia. Primeiro ela acendeu a luz, depois as cortinas” (p.10). E na página 27: “Olhou para cima e viu a mulher. Na varanda. O menino gelou”. – De Kockere é de fato mestre em seu estilo e o leitor enxerga os passos e o medo do menino.
O personagem é “o menino”, específico, só, com seu conflito. Não há pai, mãe, nem irmãos, nem amigos. A mulher gigante é apenas “uma certa mulher”. Mulher indefinida, desconhecida, temida, por isso enorme aos olhos do pequeno. E, provavelmente, pode acreditar o leitor guiado por esse olhar, comia criancinhas.
Nessa beleza expressiva, a narrativa não elege o mistério como gênero, é apenas – e muito, e tanto – um conto que olha para a infância construtora de temores e fantasias, a infância de seres pequenos que movimentam a cabeça para o alto quando querem ou precisam ver os grandes, infância que elege figuras para nelas projetarimagens do herói ou do bandido, na euforia do que se abre para a admiração ou se fecha para a ameaça, o enigma.
A casa que abriga
Duas casas e algumas ruas são espaços que ancoram a narrativa. Inicialmente apresenta-se uma casa com varanda, “alta e grandona”, de número 88, sob um foco específico, no detalhe do número.
Após apresentação do conflito, o leitor prossegue pelo desenvolvimento narrativo guiado pelos passos do personagem que enfrenta heroicamente seus temores, até a distensão, até chegar, acolhido, a um abrigo. O menino se aproxima da casa, do botãozinho vermelho da campainha que ele aperta “e a porta se abre sozinha”... Eis o desfecho da narrativa, em que a casa do medo se abre para o companheirismo, aproximando “o” menino – um ser definido – a “uma mulher gigante” – antes indefinida, que se tornou específica, porque agora se denomina Rosa, Rosa Vandersmissen, nome que surpreende o menino.
A casa que no início abriga uma gigante, “um fantasma”, que antes separa dois universos, no desfecho integra, agrega e abriga uma nova amizade, depois da tensionada fantasia do personagem:
“Sem ela (a casa), o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ‘ser atirado ao mundo’, como o professam os metafísicos apressados, o homem é colocado no berço da casa. E sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço.”
Gaston Bachelard1
Não se importe o leitor nesta leitura com o que se revela do enredo, porque há ainda muito o que se pensar e sentir nos caminhos dessa obra. Há o que imaginar e espaços a serem preenchidos, como por exemplo, em relação à tão significativa figura do gato (especialmente nas páginas 25, 26 e 29).
É assim, com respeito pela infância e muita poesia na palavra, que o estilo de De Kockere discorre uma narrativa poetizada pela linguagem e pela abordagem do tema tão próprio às crianças – a fantasia, o medo que repele e o medo como força de atração.
Literatura maiúscula, como se viu, porque De Kockere é também poeta e o uso que faz da linguagem é predominantemente estético. O autor nasceu na Bélgica, formou-se professor mas se tornou jornalista, trabalhou em revistas infantis e se fez conhecido por livros de poesia para crianças.
A ilustração – das sombras à iluminação
Sobre a maestria tecida em texto e imagem, é preciso destacar que “o caráter ímpar dos livros ilustrados como forma de arte baseia-se em combinar dois níveis de comunicação, o visual e o verbal (...) o que propicia novas experiências e novas expectativas. O leitor se volta do verbal para o visual e vice-versa, em uma concatenação sempre expansiva do entendimento.”2
A ilustração de A mulher gigante da casa 88 expõe uma relação empática com o temor e o mistério alojados na intimidade do personagem – a ilustração “sente com” o personagem – por isso se mostra em sombras, em escondidos, em “borrões” revelando o pouco visto. E nos lembra novamente Gaston Bachelard3, quando trata da poética aludindo à pintura: “Até no domínio da pintura, onde a realização parece implicar decisões que derivam do espírito, que reconhecem as obrigações do mundo da percepção, a fenomenologia da alma pode revelar o primeiro compromisso de uma obra”. É da alma do personagem que deriva a ilustração e por isso é ela alma gêmea do enredo. Ilustração e texto dialogam de forma perfeita:
“Aquela mulher tinha fascinado o menino. Ele estava com medo. Mesmo assim, tinha vontade de olhar para ela. (...) De vez em quando ele via a mulher parada à janela. Como um borrão gigantesco. Um borrão que poderia facilmente engolir alguém. Sem que ninguém jamais o encontrasse de novo. Nem em cem anos. Tão grande era o borrão.”(p.13)
No mergulhado das sombras, das penumbras, em nuances preto, cinza, ocre, bege, areia, o vermelho se destaca em várias páginas, em alguns pequenos pontos, informando que nem tudo é escuro: há o vermelho do coração emocionado do menino, e como saberá o leitor, da amorosidade, do afeto, do companheirismo. Na capa, por exemplo, imperam nos escuros superpostos a um fundo bege texturado, o edifício em que mora o menino e a imagem da velha gigante. É possível rever como ela empunha um guarda-chuva aberto apontado para o patamar como uma antena parabólica que capta o menino, imantiza, e apenas ele veste vermelho na camiseta. Vermelho que se repete pontualmente em elementos simbólicos e em várias páginas: na coleira do gato, na carta de um baralho em que figura também um gato de coleira vermelha, uma letra escarlate e três corações.
Segue-se por algumas páginas esse esquema de apresentação do vermelho evidente concorrendo com a massa das sombras, ora mais opacas, ora mais transparentes. Enquanto tudo ainda é medo e mistério. Até que “A mulher enfiou a chave na fechadura e abriu a porta” e a obra se ilumina. Estamos diante da mais bela imagem do livro – porque liberta, porque a velha ganha “cara”, ela e o pequeno ganham olhos e lábios expressivos (pp. 30 e 31).
Daí para o que segue, os sentimentos do menino se acolchoam, ganham leveza, a alma dele se liberta e o texto nos apresenta nova semântica: “subiram as escadas”, tapete “todo felpudo”, “andam de mansinho”, “cheiro de doce no ar”, “era um anjo”. A carta de baralho da página de abertura da obra anuncia um jogo do destino, de construção, de paciência, da conquista, similar ao jogo de esconde-esconde, de enigma, pacientemente jogado pelo personagem (e por que não pelos personagens?). Agora, o jogo deixa o escondido para o revelado, aquecido por um copo de achocolatado. O monstro gigante, de casacões, se desfaz, e do pó que se esfarela e vai ao chão brota uma Rosa. O nome dela era Rosa. Vermelho vida, cumplicidade. Numa obra que repercute na experiência do leitor, revelando-se, pelas palavras de Antonio Candido, como literatura que “humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.4
Notas
1 Gaston Bachelard, A poética do espaço.Rio de Janeiro: Eldorado, p.23.
2 Carole Scott e Maria Nikolajeva. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: Cosac Naify, 2011, pp.13 e 14.
3 Gaston Bachelard, idem, p.8
4 Antonio Candido. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p.244.
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