A coleção Gato Letrado é uma fonte privilegiada onde os mediadores podem ir beber. O curriculum dos escritores ajuda, mas o aspeto mais relevante desta coleção da editora brasileira Pulo do Gato é que os seus textos não são instrutivos, alguns serão até pouco óbvios para quem procura estratégias para aplicar no terreno. - Revista Blimunda / Fundação José Saramago - 01/01/2013 Publicado em:Revista Blimunda / Fundação José Saramago - 01/01/2013
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A coleção Gato Letrado é uma fonte privilegiada onde os mediadores podem ir beber. O curriculum dos escritores ajuda, mas o aspeto mais relevante desta coleção da editora brasileira Pulo do Gato é que os seus textos não são instrutivos, alguns serão até pouco óbvios para quem procura estratégias para aplicar no terreno. Ainda bem. O mediador, especialmente o profissional, mas não só, tem de se afastar do seu universo e ler, o que se aplica tão seriamente ao texto literário como à teoria sobre leitura, promoção, educação, literatura. Não o fazendo, corre um risco muito sério de se deixar instrumentalizar por estratégias e ferramentas restritivas, que limitarão o mundo dos seus leitores. Dar a ler requer uma prática continuada de leitura crítica, pensante. É isso que os seis livros que já foram editados oferecem. Lançados coletivamente em 2012, contam com nomes maiores da promoção da leitura: duas colombianas, Sílvia Castrillon e Yolanda Reyes, duas argentinas, Maria Teresa Andruetto e Cecília Bajour, um mexicano, Daniel Goldin e uma brasileira, Marina Colassanti compõem o catálogo que se faz, essencialmente, de comunicações apresentadas em Congressos, Encontros e Feiras do Livro. Cada livro é prefaciado por um autor brasileiro de qualidade, como Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos de Queirós ou a própria Marina Colassanti. É uma forma de fazer chegar ao Brasil um conjunto de vozes essenciais, e dar início a um compromisso da editora: fazer livros para crianças e jovens leitores e livros para formadores de crianças e jovens leitores. Há sempre uma espécie de magia numa história bem contada. Marina Colassanti, para além de o saber dizer, também o sabe escrever, como comprova a sua vasta e premiada obra. Quando a história é biográfica e narrada com aquele efeito de sinceridade, a emoção do leitor é quase certa. A juntar a tudo isto, a curiosidade de saber como se chega a um determinado lugar. A história que Colassanti partilha é a da sua construção leitora, juntando aos livros que leu, as metáforas e os símbolos que pretendem significar os seus efeitos e que traduzem, para além disso, a subjetividade e singularidade da própria literatura. Depois de Como se fizesse um cavalo, discorrer sobre mecanismos e artificialidades do mercado traça um paralelo perfeito entre o bom e o mau. Também o editor Daniel Goldin começa, no ensaio “Os Dias e os Livros”, que dá nome ao livro, por narrar a sua experiência de construção leitora: dos tempos em que o distante pai lia em voz alta para os filhos à conceção da leitura como passaporte para o conhecimento e o prestígio social. Da infância à idade adulta, Goldin expõe os vários estádios por que passou, os preconceitos que alimentou e que se viu forçado a abandonar. O caminho das emoções e da aceitação da ficção como realidade fez-se desacreditando e somando novos parceiros de partilha, até chegar a uma conclusão surpreendente: as viagens que os livros nos proporcionam ultrapassam sempre as viagens reais. “Viajei para a Europa por ter lido Nietzsche, Cortázar, Breton. Ao chegar a Paris, a cidade já me parecia conhecida. Havia chegado antes com os livros. Mas nunca se cumpriu o que eu esperava ao lê-los. De fato, poucas vezes as promessas foram cumpridas, as portas foram transpostas ou o cofre me permitiu chegar ao verdadeiro tesouro. E, ainda assim, quando o consegui, a completude foi efêmera. A dimensão que os livros iluminam é a da incompletude e da promessa de acalmá-la. A armadilha que nos colocam é que só se pode chegar com sua própria matéria, a linguagem.” Grande parte da obra é dedicada à formação de leitores, questionando as supostas relações de causa-efeito entre leitor e livro, entre escola e leitor, entre leitor e família. Sobre a mediação entre pais e filhos, em “A Paternidade e os Livros: divagações sobre a hospitalidade da leitura”, Goldin reitera a impossibilidade de uma identificação perfeita entre os mediadores pais e os leitores filhos, que leem o mesmo texto mas que o sentem de formas diferentes, que se tocam, mas nunca se abraçam. A voz do adulto chega a funcionar como duplo, porque é a voz de alguém querido pela criança e ao mesmo tempo a voz da história, não se distinguindo em grau de importância. A construção do leitor é sempre distinta, não apenas em relação aos outros leitores, com memórias diferentes, relações sociais e afetivas várias, mas também em relação a si próprio, no tempo. Por isso, o editor destaca uma dimensão histórica, temporal, na formação de leitores, e diagnostica a necessidade de se encontrarem, simultaneamente, elementos de continuidade, ao longo da tradição escrita e oral que terá tido e continuará a ter efeito na construção identitária das crianças. “Para pensar na formação de leitores como processo não falta somente definir a trama de continuidades entre os campos biológicos e culturais, psíquicos e sociais. É preciso também descobrir recortes em que, superficialmente, vemos continuidades.” No livro Por uma Literatura sem Adjetivos, a escritora Maria Teresa Andruetto debruça-se sobre questões relacionadas com a literature dita infantil e juvenil, a escrita, o mercado editorial, a escola, o cânone. A sua experiência confere a cada uma das comunicações (proferidas em seminários, feiras do livro e encontros de especialistas) uma subjetividade enriquecedora, que ultrapassa o mero sentido impressivo e serve de base a todas as suas reflexes teóricas e diálogos com outros pensadores, filósofos e escritores. No ensaio “Algumas questões em torno do cânone”, a autora (que foi distinguida com o Prémio Hans Christian Andersen, em 2012) traça uma análise muito acurada sobre o sentido do cânone. Se o entende como uma resistência ao Mercado dos livros efémeros e sem qualidade, recusa terminantemente o seu valor absoluto considerando-o falacioso, limitativo da experiência leitora de cada um, e perigoso, já que funciona como controlo social. “Não se trata exatamente dos melhores livros, mas daqueles que nos disparam uma flecha que, como o amor, como o amado, não atinge todos igualmente. Não entesouramos o livro mais bem escrito, mas aquele que, possuidor de um punc- tum que o aloja em nossa memória, continua nos questionando acerca de nós mesmos.” Parte da ideia dinâmica de que para haver cânone é necessário que existam livros fora dele e de que essa dialética não é estática, alterando-se em função do tempo, dos agentes mediadores, e dessa, por vezes terrível, ação do mercado. Para o explicitar, partilha a experiência sobre o seu contributo para a construção de um campus literário, na Argentina pós ditadura e os inevitáveis erros de juízo que cometeu. “O que, a nosso ver, era então recomendável e, quase sem exceção, o que perdurou dos anos 1980 até nossos dias, nós o canonizamos (refiro-me ao conjunto de instituições, publicações, congressos e editoras que surgiram naquela época) em nossos cursos, seminários, campanhas de leitura, revistas, reconhecimentos públicos e resenhas. (…) muitas vezes, não soubemos distinguir – entre os inúmeros livros editados que chegaram mais tarde – os que podiam nos revelar algo sobre nós mesmos de outros que eram puro papel inútil, letra impressa incapaz de dizer qualquer coisa.” Chama ainda a atenção para o destaque que as editoras dão aos autores e as formas como os vendem, como produto de marketing, aos principais agentes compradores: as escolas, e como esse fenómeno desvia a leitura do livro para o substituir por figuras que o representam, é certo, mas que em última análise podem não levar à leitura. Importante, e tese recorrente ao longo dos doze ensaios, é que a literatura infantil não deve ser pensada em função do destinatário e apenas como literatura. Assim deve ser o ofício do escritor: uma busca da sua voz, da sua unicidade, e não um preenchimento de espaços dentro do que se pressupõe correto. A literatura, toda ela, deve ser singular, sem obedecer a adjetivos que a cataloguem e limitem. Sobre a receção, haverá boas surpresas.
Também Cecilia Bajour reflete sobre a questão do cânone, do ponto de vista da sua construção. Como se tecem relações entre o tradicional e o contemporâneo, como se ultrapassam fronteiras geográficas ou ainda, como pode cada mediador conceber um cânone que materialize uma ideia individual de literatura infantil e de cultura da infância. Também a promoção da leitura em contexto escolar merece a sua atenção crítica e uma proposta de recolocar as atividades de leitura livre, pensadas para formar leitores pensantes, ao serviço da própria aprendizagem da leitura. Ao contrário de Andruetto, esta crítica literária e mediadora tem um estilo discursivo mais prático, recorrendo menos a argumentações de âmbito filosófico e mais a exemplos de experiências ou situações vivenciadas em contexto de promoção da leitura. “Ouvir nas Entrelinhas, o valor da escuta nas práticas de leitura”, ensaio inaugural do livro com o mesmo nome, é um bom exemplo. Aqui, Cecília Bajour defende a partilha social da leitura, a sua interpretação coletiva como arma para o alargamento da própria leitura. Para o mediador, a responsabilidade é grande: em primeiro lugar, obriga a uma seleção de leituras acutilantes, depois a uma capacidade para despoletar juízos, silêncios, dúvidas, emoções, prazer e rejeição, sem nunca ceder à tentação de fechar sentidos apenas porque tal lhe parece apaziguador, finalmente a saber ler nos leitores os seus sinais. “Além de aprender a escutar os silêncios dos textos e colocá-los em jogo nas experiências de leitura, os mediadores podem aguçar o ouvido aos modos particulares que os leitores têm de se expressar e de fazer hipóteses sobre seus achados artísticos.”
Quer o livro de Silvia Castrillon quer o assinado por Yolanda Reyes dialogam e complementam a linha de pensamento de Cecília Bajour. A defesa política da leitura pública e das bibliotecas, assim como a da formação de bibliotecários, é um dos temas centrais de O Direito a Ler e a Escrever. Especialista na área da promoção da leitura (atualmente preside à Associação Colombiana de Leitura e Escrita), Sílvia Castrillon aponta ainda o dedo ao ensino, aos preconceitos e metodologias instaladas, pugnando, por exemplo, pela revalorização da escrita, apagada pela leitura, que, ainda assim, não floresce tanto ou tão bem como poderia. Neste sentido caminha também Yolanda Reyes, ao centrar os seus quatro ensaios no processo de escrita e no ensino. A promotora de leitura, fundadora e diretora do Instituto Espantapájaros, aponta o dedo à frágil relação entre a produção textual das crianças, demasiado dependente das estruturas linguísticas, e a leitura, especialmente a literária. Critica a objetivação escolar da literatura, a assunção de um sentido único e correto para a interpretação e apela à recuperação de uma ideia subjetiva, construtiva, singular, da própria linguagem artística. No ensaio “Ler e brincar, tecer e cantar: apontamentos a partir de oficina de criação literária”,a mediadora apresenta os vários momentos que desenvolveu numa oficina de criação literária: primeiro, ajudar os participantes a encontrarem a sua própria matéria de escrita, depois dispô-la e contextualizá-la, finalmente, dotá-la de um sentido literário. Não será aleatória a proximidade entre os momentos que Reyes destaca e os grandes eixos retóricos da composição literária. Todavia, o que a autora pretende destacar é sobretudo a necessidade de ajudar cada um a encontrar-se e a dificuldade que o potencial escritor, adulto ou criança, tem em levar para o texto a sua formação literária e uma capacidade de brincar, de imaginar, de se permitir sentir fora dos grilhões próprios do sistema linguístico. Falta, no ensino, esta amplitude: “(...) temos de pedir à escola (...) tudo o que se negou a tantos escritores durante tantas gerações de analfabetismo funcional. Se essa ferramenta que é a língua e se essa “educação sentimental” que se nutre da herança literária – da herança simbólica de nossa espécie humana – se fomentasse em nossas escolas desde a mais tenra infância, estou certa de que teríamos mais possibilidade para explorar a própria possibilidade nas ofi cinas de escrita.” A sua mensagem fica muito clara no capítulo seguinte, “Escrever para os Jovens na Colômbia”, quando explicita a urgência de escrever sobre um quotidiano cruel e violento e deixa testemunhos e situações reais que impressionam quem os lê. “(...) talvez, ao oferecer o que ler, possamos dar a cada criança, para que cada um monte – sabe-se lá de que textos cada um necessita – uma caixa de ferramentas que a ajude na tarefa de inventar a sua própria vida, entre o dado e o possível. (E, quem sabe, com algo de impossível, com algo de utopia.)”
Uma leitura comparativa dos livros que integram a coleção permite ao leitor encontrar muitos pontos de consenso, e nenhum (pelo menos relevante) de discórdia. A proximidade destes mediadores, escritores, editores, com o público, um vasto conhecimento teórico sobre literatura (e não exclusivamente sobre literature infantil e juvenil) e um olhar critico sobre a história e o presente dos seus países, fá-los defender alguns pontos essenciais para a leitura e a formação leitora: a literatura é uma fonte de subjetividade criativa, um ato singular, e a leitura dialoga com o texto na mesma medida; a escolar não pode instrumentalizar a leitura e a escrita em função de relações de causa-efeito limitadas a meras estruturas sintáticas e morfológicas ou a uma tradição literária simplifcada e redutora, mal concebida por manuais e dicionários escolares. Partilhar leituras, ler em voz alta, falar sobre o que se lê, escrever para alimentar a imaginação e, numa estreita ligação, conhecermo-nos, conhecermos o mundo e alcançarmos essa magia dinâmica do devir da literatura.
(Andreia Brites)
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