A partir de mais ou menos uns dez anos, e até uns doze ou treze, minha grande paixão literária foi mesmo o bom e velho Monteiro Lobato. Não era de sua obra completa que eu gostava, pois as Histórias da tia Nastácia me davam medo, enquanto O poço do Visconde e Geografia da dona Benta eu achava “chatos”, com adjetivo tão amplo querendo dizer que neles o genial escritor paulista havia se excedido na dose de conteúdo didático. Mas dos Lobatos que eu gostava – Reinações de Narizinho, Caçadas de Pedrinho, O Saci, A Chave do Tamanho, O Minotauro e Os 12 Trabalhos de Hércules –, eu gostava muito. - Revista Emília - 01/08/2011 Publicado em: Revista Emília - 01/08/2011
http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=8
A partir de mais ou menos uns dez anos, e até uns doze ou treze, minha grande paixão literária foi mesmo o bom e velho Monteiro Lobato. Não era de sua obra completa que eu gostava, pois as Histórias da tia Nastácia me davam medo, enquanto O poço do Visconde e Geografia da dona Benta eu achava “chatos”, com adjetivo tão amplo querendo dizer que neles o genial escritor paulista havia se excedido na dose de conteúdo didático. Mas dos Lobatos que eu gostava – Reinações de Narizinho, Caçadas de Pedrinho, O Saci, A Chave do Tamanho, O Minotauro e Os 12 Trabalhos de Hércules –, eu gostava muito.
Antes disso, porém, minha primeira paixão literária chamava-se Juca e Chico. Esse livro era um verdadeiro objeto de culto entre mim e minha única irmã, e notem que ela era dois abismais anos e meio mais velha, e que, afora um ou dois cachorros especialmente queridos, e nossos pais, naturalmente, não foram muitas as paixões em comum que tivemos naquela fase da vida. Os motivos desse autêntico milagre fraterno eram vários.
Para começar, o livro nos foi apresentado com um diferencial incomparável: nossa mãe e nossos três tios maternos o liam, e adoravam, quando eles eram crianças! Quando os ouvíamos falar do livro, o faziam com gosto, recitando trechos de cor, a ponto de certas passagens terem se transformado em verdadeiras piadas internas entre os quatro irmãos. Além disso, o autor do texto era também o autor das ótimas ilustrações. Em mim, especialmente, elas tiveram grande impacto, fazendo-me sonhar com a carreira de desenhista, a qual de fato cogitei entre os 16-17 anos. Por fim, o tradutor do livro, escondido pelo pseudônimo de Fantásio, teve sua identidade de grande poeta brasileiro desvendada pela nossa mãe, criando entre as nossas leituras e o mundo adulto uma conexão inesperada, que dava ao livro uma dignidade suplementar. Seu nome era Olavo Bilac.
Tamanha paixão fez com que nunca nos interessássemos em saber se o autor tinha algum outro livro publicado no Brasil; e ele tinha, vários, pela mesma editora, a Edições Melhoramentos. O fato é que Juca e Chico nos bastava.
Ele fora escrito por um alemão chamado Wilhelm Busch (1832-1908), clássico na literatura infantil de seu país e hoje em dia considerado um dos precursores das histórias em quadrinhos. Escrevendo em versos, rimados dois a dois, ele conta, no decorrer de um prólogo, sete travessuras e uma conclusão, a história de dois garotos capazes das piores estrepulias. Já no prólogo, em poucos versos a índole dos dois meninos surge, rebelde e viva:
Não têm conta as aventuras,
As peças, as travessuras
Dos meninos malcriados,
Destes dois endiabrados;
Um é o Chico, outro é o Juca:
põem toda gente maluca,
Não querem ouvir conselhos
Estes travessos fedelhos!
Na primeira travessura, eles matam as galinhas de estimação da viúva Chaves, ou, para ser mais preciso, um belo galo francês e três galinhas. Fazem-no amarrando pedaços de pão na ponta de barbantes, que por sua vez estavam amarrados entre si, de modo que os pobres bichinhos, ao tentarem engolir os pedaços de pão, sem conseguir se movimentar livremente, acabam morrendo sufocados. A agonia é dolorosa:
Até que desesperados,
Voam e ficam pegados
A um galho seco. Que horror!
Perderam as forças e a cor;
Ficam roucos; fazem só,
Quase sem voz: quó... quó... quó...
Os versos que marcam o desespero da viúva são um bom exemplo das tais piadas internas, que mencionei anteriormente, entre minha mãe e seus irmãos. Sempre que descreviam o desespero de uma mulher, em qualquer situação da vida cotidiana, um deles fatalmente citava Juca e Chico:
Aflita a pobre senhora
Arranca os cabelos e chora...
Na segunda travessura, os meninos, com varas de pescar e anzóis, pela chaminé, roubam as mesmas três galinhas e o belo galo francês da caçarola da viúva Chaves. Sim, diante do fato consumado, mesmo inconsolável, a viúva decidira assar os falecidos galináceos. Mas, durante o processo, vai ao porão da casa por um instante, deixando Totó, seu cachorro, para cuidar das panelas. Claro que, quando volta e vê a caçarola vazia, joga toda a culpa no cachorro, enquanto os dois meninos se refastelam no telhado.
A terceira travessura é um pouco mais cruel. Consiste em serrar parcialmente a tábua que servia de ponte sobre um riacho bem defronte à casa do alfaiate da vila. Serrada a tábua, os dois meninos se escondem numa moita e começam, aos gritos, a ofender o alfaiate, que sai de casa furioso para castigá-los. Quando tenta atravessar a ponte improvisada, porém, ela se parte e o alfaiate cai na água num trambolhão. Prestes a morrer afogado, é salvo por dois gansos, mas sofre cólicas formidáveis devido à quantidade de água que engoliu, e termina tendo seu estômago passado a ferro pela esposa, escapando da morte graças a essa “engomação forte”.
De todo o episódio, contudo, o trecho mais delicioso é a apresentação do alfaiate, que abre a travessura:
Havia um homem na aldeia,
Alfaiate de mão cheia.
Jaquetas para o serviço,
Fraques de bolso postiço,
Calças, roupas domingueiras,
Coletes com algibeiras,
Paletós sacos de alpaca,
Rabona ou sobrecasaca,
Blusa, capa, sobretudo,
Casaca de rabo – tudo
Sabia fazer com arte
O alfaiate Braz Duarte.
Até aqui, as travessuras foram, entretanto, relativamente leves. As duas primeiras, contra animais; e que criança não exercitou um pouco sua maldade pelo menos contra lesmas, sapos e insetos em geral? E que menino nunca provocou o tombo de alguém, ou empurrou um amigo na piscina? Mas a quarta travessura instaura um novo clima, com os dois anti-heróis subindo vários pontos na escala do sadismo. Agora, colocam pólvora no cachimbo do mestre Gouveia, o professor e sacristão da vila. Claro que o cachimbo explode na cara do infeliz, e o desenho mostra seu rosto preto de fuligem, sem cabelos, sobrancelhas, olhos ou nariz. Eu, criança, tinha até um pouco de medo de encarar aquela devastação.
Ao dissipar-se a fumaça,
É que se vê a desgraça...
Vive o sacristão, coitado!
Mas, santo Deus, em que estado!
Queimada pela raiz
A cabeleira, o nariz,
A boca, o queixo pontudo,
Olhos, dedos, mãos e tudo,
Tudo assado, tudo fusco,
Tudo cheirando a chamusco!
Na quinta travessura, a crueldade se volta contra um membro da própria família, um tio dos meninos. Os dois escondem besouros imensos nos lençóis da cama onde ele dorme. Durante a noite os animais saem de seu “ninho”, o tio acorda assustado, cercado de insetos asquerozos, pula da cama e, de chinelo em punho, provoca uma verdadeira chacina entomológica.
Entre meus tios, claro que essa travessura era especial, e ironicamente, citada:
Menino! quem tem um tio
(eu já tive um e perdi-o!)
Deve trazê-lo amimado,
E ter com ele cuidado,
E estar sempre ao seu serviço,
Porque os tios gostam disso.
Nesse momento, percebe-se que as maldades ultrapassaram os limites aceitáveis, ferindo severamente o sacristão e atingindo um familiar próximo. O livro ganha um certo quê trágico, pois o castigo, sublinarmente, se torna o desfecho necessário da história. Juca e Chico passam a conviver com a sombra de um destino doloroso, como heróis de uma tragédia, apesar de todo o bom-humor dos versos.
Na sexta e penúltima travessura, os meninos, em plena Semana Santa, invadem uma padaria, atrás de biscoitos e doces. Porém, na tentativa de alcançarem guloseimas no alto de uma prateleira, perdem o equilíbrio e caem na massa do pão. Nessa hora volta o padeiro, que, ao encontrar os invasores, decide castigá-los. Aproveitando o fato de estarem cobertos de massa, coloca-os no forno para assar.
E aí estão dois pães acabados,
Cheirosos, louros, tostados.
“Era uma vez, afinal...”
Dirão todos. Porém, qual!
Rap... rap.. Os dois diabinhos,
Como dois ratos daninhos,
Roem a casca de pão,
e safam-se da prisão.
Foi por pouco dessa vez. Quase os corpos de Juca e Chico, como o de Jesus, viraram pão depois do castigo. Eles têm uma última chance de largar espontaneamente a vida do crime, mas não a aproveitam, e o cerco se fecha de vez.
Na última travessura, de novo o pão surge como elemento central do episódio, aqui no seu estado mais natural, o trigo. Sacos de trigo inspiram aos meninos a última traquinagem. Talvez não seja por acaso. Desde a Antiguidade o trigo era um alimento sagrado para muitos povos. Na Grécia, era o símbolo de Deméter, e em Roma, de Ceres, deusas da agricultura que usavam ramos de trigo como coroas, eram responsáveis por dar à humanidade esse alimento primordial e faziam os grãos crescerem, encarnando os ciclos naturais – das estações do ano e das colheitas, e por extensão também da vida dos homens e dos povos. A simbologia não pára por aí. No contexto cristão, obviamente mais próximo da cultura alemã e do autor de Juca e Chico, o pão, e portanto o trigo, equivalem ao corpo consagrado de Jesus. Além disso, o binômio pão/trigo simboliza o elo essencial à vida comunitária – a palavra “companheiro” vem de cum panis, do latim, “aquele com quem se divide o pão”.
Pois bem. Juca e Chico invadem o celeiro de um agricultor local. Por puro espírito de porco, abrem com facas pequenos buracos nos sacos de trigo, de modo a que o homem os carregue um bom tempo antes de perceber que está desperdiçando tão preciosa e simbólica mercadoria. Mas o agricultor encontra os dois meninos escondidos no celeiro, coloca-os num saco e leva-os ao dono do moinho local.
Mestre moleiro, bom dia!
Trago-lhe a mercadoria
Mais cara que há no mercado!
Quero isto já bem passado!
Quero isto já bem moído!
– Pois não! Já vai ser servido!
E dessa vez não tem perdão. Primeiro eles pecaram contra a natureza, matando animais; depois, contra pessoas da comunidade, atingindo o alfaiate e o sacristão; então atentaram contra a família, quase matando o tio do coração; em seguida, em plena semana da morte e da ressurreição de Jesus, atentam contra o pão que simboliza seu corpo; por fim, pela segunda vez, conspurcam o símbolo maior do amor entre os homens e da vida em sociedade. Não havia limites para a maldade dos dois meninos, era preciso acabar com aquilo de um jeito ou de outro!
Eles são, literalmente, triturados vivos. Mas esse livro é grande arte, não um filme do Quentin Tarantino, e portanto ele não acaba com um banho de sangue ou uma apoteose de carne e vísceras expostas. Pela segunda vez os dois anti-heróis viram pão, nesse caso, para ser mais preciso, viram grãos de trigo. Há uma certa circularidade mítica no final da história, pois os dois garotos, que começaram o livro matando as galináceas da viúva Chaves pela boca, ao final são devorados por aves bastante domésticas, dois gansos que bem poderiam ser os salvadores do alfaiate na segunda travessura:
E aí tendes os dois meninos,
Em grãos tão finos, tão finos,
que são logo devorados...
e os dois gansos esfaimados
Nunca em toda a sua vida
Viram tão boa comida.
Na conclusão do livro, lemos que ninguém na vila chorou a morte dos dois meninos. No máximo, o tio, lamentou-se de eles não lhe terem ouvido os conselhos...
Eu e minha irmã, mesmo sem consciência nítida da simbologia cristã envolvida na história, sequer de seus fortes intuitos pedagógicos, amávamos esses personagens e suas travessuras rimadas. E disputávamos o antigo exemplar que havia lá em casa. Tenho-o comigo hoje em dia, mas todo rabiscado pela minha irmã, numa forçada tentativa de demarcar território e assegurar para ela sua posse. É compreensível. Pode-se dizer que aprendemos a gostar de poesia graças a Juca e Chico, o que não é pouco.
Fazíamos verdadeiras competições de decoreba, que estão registradas no livro sob a forma daqueles “cês” de perna comprida, que em nossas provas de colégio significavam “certo”, ou grandes “xis”, em sinal de erro. Cada estrofe decorada valia tantos pontos, uma travessura inteira bem recitada merecia nota 10.
Mais tarde, trabalhando numa editora que se propunha a começar uma linha de livros infantis, sugeriJuca e Chico como um dos primeiros lançamentos. A encarregada da área, após consultar especialistas em pedagogia e literatura para crianças, devolveu-me o livro com um ar de desprezo, dizendo: “Isso aí é tudo que não se quer que as crianças leiam hoje em dia.”
Pode ser, pode bem ser, que a moral normativa da história, seu fundo simbólico religioso, e sua pedagogia “trituradora de gente” não mais se adequem. Por outro lado, as crianças não deixaram de ser sádicas, mesmo quando apresentam apenas um sadismo saudável. E nunca aconteceu de eu ler esse livro para uma criança, menino ou menina, e ela não se interessar pelo frescor das rimas, pelo humor da história, pela agilidade da narrativa, e, sim, também pela moral. Se você tem um sobrinho com quem você convive pouco, tente. Se sua nova namorada tem um filhinho que não vai com a sua cara, experimente. Se um dos seus filhos não vai com a sua cara, leia Juca e Chico correndo para ele. A vivência literária de todos aqueles impulsos destrutivos, num tom tão leve, certamente irá desarmar os espíritos à sua volta. E você não estará fazendo tão mal a eles quanto acreditam as especialistas consultadas pela minha colega de trabalho. Afinal, não chega a ser uma moral tão antiquada assim ensinar às crianças que o interesse coletivo está acima dos interesses individuais, e que aqueles que atentam contra os interesses coletivos precisam ser contidos para o bem da sociedade.
|