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O CONTEMPORÂNEO NA LITERATURA INFANTIL
Temas considerados difíceis, como questão de refugiados ou preconceito, são abordados por autores que escrevem para crianças e jovens - Por Bia reis e Cristiane Rogério

Publicado por: O Estado de S. Paulo - Outubro de 2017

http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,o-contemporaneo-na-literatura-infantil,70002045151

 

Bia Reis Cristiane Rogerio 

ESPECIAL PARA O ESTADO

Guerras, refugiados, tragédias ambientais, trabalho infantil, preconceito, novos formatos de famílias. Para a sorte de crianças e jovens, muitos autores e editoras com foco nessa faixa etária têm olhado para esses temas. Contrapondo uma onda de superproteção, fazem questão de usar caminhos poéticos por meio das narrativas ficcionais para tocar em assuntos considerados difíceis, sem deixar que pareça um discurso didático ou moralizante. 

“Entendo que literatura não é para ensinar a ser assim, a pensar assim, a fazer assim. O texto literário não pode estar associado ao propósito do didatismo. Querer ‘ensinar’ pela literatura é dar a ela uma atribuição que não lhe compete e que a reduz”, diz Márcia Leite, escritora, educadora e diretora da editora Pulo do Gato, que há seis anos pauta- se em publicar também livros com temáticas sociais, como a questão dos refugiados ou a tragédia causada pelo rompimento da barragem em Mariana (MG).

Por mais que hoje encontremos dezenas e dezenas de livros, nacionais e estrangeiros, que toquem em questões, digamos, mais contemporâneas de nossa sociedade, não é de agora que a prática faz parte da literatura para a infância. Monteiro Lobato, o precursor no Brasil de um tipo de literatura infantil mais questionadora, levava às narrativas do Sítio do Picapau Amarelo reflexões que, na maioria das vezes, não faziam parte das conversas com as crianças. Como em A Chave do Tamanho, de 1942, em que o menino Pedrinho começa a ler o jornal para a avó Dona Benta com notícias de novos bombardeiros em Londres: “Centenas de aviões voaram sobre a cidade. Um colosso de bombas. Quarteirões inteiros destruídos. Inúmeros incêndios. Mortos à beça”. 

Quando se quer ensinar ou sensibilizar as crianças sobre determinado assunto, o adulto (autor ou mediador do livro) se vê em um dilema. Seria necessária a verdade crua e nua, tal qual uma notícia de jornal? Ou teria um efeito melhor e uma delicadeza mais adequada abordála de forma poética e criativa?

Para confeccionar o livro Drufs, Eva Furnari passou por um longo período de experimentações de diversas técnicas visuais e textuais, uma sucessão de tentativas e erros que foram configurando o que a obra se tornou. E se as crianças, em uma prática de redação na escola, pudessem descrever as características físicas e emocionais de suas próprias famílias? Por meio do humor e da irreverência que marcam os quase 40 anos de carreira, Eva apresenta personagens particulares que falam de conflitos e diferenças de todos nós.

“O tema dos diversos tipos de família apareceu naturalmente. Quando a mente está ocupada com criança e educação, (o tema) brota, não de uma maneira didática, mas sim simbólica”, afirma Eva. Segundo a autora, o enredo principal do livro foi a última ideia a surgir. Ela foi descrevendo e criando as famílias e sempre sentia que estava em lugar de julgamento. Um dia, teve um estalo e pensou na ideia de as crianças falarem sobre suas famílias. Depois, imaginou que isso pudesse ocorrer em forma de redação. Só no final surgiu a irreverente professora Rubi, que pede a tarefa no início do livro. “Foi do fim para o começo”, fala Eva.

Criação. Essa forma de criação não é por acaso: faz parte do processo de um artista, sempre antenado sobre o que uma sociedade precisa falar. Não tem intenção pedagógica, muito menos de provocar uma única interpretação. Na boa literatura infantil não poderia ser diferente. “Felizmente está longe o tempo em que predominava (na poesia e na prosa) um tom edificante e didático, com temas e enfoques que favorecessem o ensino de lições de moral, de bons modos, de civilidade, civismo etc e tal”, observa Leo Cunha, escritor mineiro e autor de dezenas de livros para crianças.

“Não conseguiria fazer um livro eminentemente informativo, ou de denúncia, ou que buscasse uma lição de moral. Para mim, um tema impactante – política, social ou eticamente – não se sustenta por si só”, diz. É assinada também por Cunha uma das obras mais impactantes do segmento no Brasil: Um Dia, Um Rio, com André Neves.

A obra aborda, com texto e imagens, a tragédia de Mariana de forma enfática e sensível, sem concessões à criança, embora dê um tom de esperança no final. “Em uma obra que se quer literária, a forma também deve ser marcante. Quando digo forma quero dizer as opções dos autores (escritor, ilustrador e editora) quanto à linguagem, à estrutura, ao ponto de vista, ao que se mostra e o que se deixa para a imaginação, intuição ou sensibilidade do leitor”, afirma Cunha.

Roger Mello, um dos mais importantes autores de literatura infantojuvenil – único brasileiro a vencer como ilustrador o Prêmio Hans Christian Andersen (espécie de Nobel do livro infantil) –, publicou vários livros com temáticas fortes sobre o lugar da infância em nossa sociedade, utilizando sua habilidade bem particular de contar histórias potencializando textos e imagens. Carvoeirinhos, de 2009, é um deles.

As páginas pretas que ocupam quase todo o livro alternam- se com tons de cinza, referentes à fumaça e fuligem, e outros em rosa e laranja, simulando um fogaréu no meio do livro. O cenário é uma carvoaria onde crianças trabalham. O narrador é um marimbondo que ronda o lugar e se compara à vida humana. Mello trata da falta de opção da criança, sugere corrupção na fiscalização do trabalho infantil.

O autor trabalha com a poesia e as representações para fugir do discurso direto, o que faz com que a leitura seja mais interessante e provoque uma reflexão além da dicotomia bem e mal. “Minha maneira de não tornar esses textos e imagens panfletárias é ir além do bem e do mal. É pensar que muitas vezes existe uma criança que não é passiva, para não transformála em estatística. No caso do trabalho infantil é muito difícil não cair no panfletário, mas ser panfletário é a morte da ficção.”

 

‘A vida é dura para as crianças também’

Para Márcia Leite, escritora, educadora e diretora da Editora Pulo do Gato, os jovens leitores precisam de livros que permitam interlocuções sobre temas que os rondam

Educadora há 35 anos, Márcia Leite foi professora dos ensinos fundamental e médio. Escreve para crianças e jovens desde 1986 e publicou mais de 40 livros. Em 2011, com Leonardo Chianca, ela criou a Editora Pulo do Gato. Em entrevista ao Estado, Márcia fala sobre a necessidade de levar às crianças livros que facilitem o diálogo sobre temas sobre os quais elas têm curiosidade ou necessidade de diálogo - mesmo quando esses temas são tristes ou controversos. Leia abaixo trechos da entrevista.

Quando vemos o catálogo da Editora Pulo do Gato, impressionam a coragem de tocar em temas tristes e também a maneira como eles são tratados. Abordar esses temas com as crianças e, de certa forma, com os adultos, é uma missão?

Acho que a palavra vocação talvez seja mais apropriada que missão. A Pulo tem um DNA muito particular, por ser uma editora independente criada e tocada por dois educadores, autores e editores. Nosso catálogo revela os temas que importam e habitam a pessoa do editor. Pensando assim, o fato de termos livros que falam de direitos humanos, da criança em situações de vulnerabilidade, da guerra e do refúgio vista pelo foco da infância, entre outros, não deve ter sido coincidência e sim consciência da necessidade e importância de obras como essas. Crianças precisam de livros que permitam interlocuções sobre temas que as rondam direta ou indiretamente e sobre os quais têm curiosidade ou necessidade de diálogo. Se alguns temas são tristes, duros, controversos, comoventes, bem, a vida é assim também para as crianças.

Ao tratar desses temas, os livros podem tocar os envolvidos de maneira diferente? Acredita que eles repercutem nas famílias e na sociedade como um todo?

Se eu não acreditasse não seria educadora. Trabalhei 30 anos em escola, então não dá para ser educadora só de vez em quando, nem editor. Um catálogo é fruto de um percurso de escolhas coerentes. De tentativas, erros e acertos, assim como a educação. O projeto editorial da Pulo tenta dialogar com nossa visão de mundo, que é nunca reduzir e nunca dizer nunca para um tema. 

O diálogo entre texto e imagem no livro ilustrado pode ampliar a busca poética como forma de abordar assuntos difíceis como Mariana ou refugiados?

Um livro ilustrado é um jogo sem regras em que a busca dos sentidos pode acontecer pelas mais improváveis e inusitadas combinações entre as linguagens visuais e verbais, incluindo o projeto gráfico. Quanto mais possibilidades de desvios de rotas, de fuga da obviedade, a mais possibilidades interpretativas o leitor será exposto. A ausência da poética faz com que o tema grite em torno de um discurso unívoco. Num bom livro ilustrado, tudo é pensado para a pluralidade. 

E por que vale a pena publicá-los?

Livros podem fazer diferença na vida das crianças. Elas não têm qualquer dificuldade com temas considerados delicados, controversos ou difíceis. Difíceis são os adultos que precisam ser convencidos de que as crianças não vivem uma realidade paralela à deles. E que têm direito de conhecer e compreender o mundo pelas lentes cuidadosas da linguagem simbólica, na literatura e no livro ilustrado.

 



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