"Olhe para mim", entre os livros que podem gerar boas conversas sobre o preconceito étnico. Publicado em: O Globo, Blog da Graça Ramos - Julho de 2015
http://oglobo.globo.com/blogs/graca-ramos/posts/2015/07/14/visoes-da-diferenca-569361.asp
O blog recebeu uma série de títulos que abordam o tema do preconceito étnico. Assim como ocorre no mundo real, as obras ficcionais lidam de variadas maneiras com o assunto. Há narrativas que apelam ao poético e outras que exibem caráter mais educativo. Em todas está embutido o desejo de transmitir às crianças que a variabilidade faz parte da vida. Por vivermos época em que parte da sociedade radicaliza a negação ao outro e estimula a agressão ao diferente, a leitura desses livros temáticos pode ser uma aliada na hora de conversar com meninas e meninas sobre diversidade.
Das obras avaliadas, a mais elaborada intitula-se “Olhe para mim” (Pulo do Gato), de Ed Franck e Kris Nauwelaerts, com tradução de Cristiano Zwiesele do Amaral. Eles produziram narrativa de caráter memorialístico. O protagonista Kitoko sonha com suas origens no continente africano enquanto visita o museu em que a mãe trabalha. As lembranças são acionadas quando vê um quadro de Gustave Vanaise, intitulado “O negro e eu” (1886), no qual aparecem uma menina branca vestida de azul e um menino negro, com vestes douradas.
As ilustrações são inspiradas em obras de ícones da arte ocidental e revisitam diferentes formas de expressão. Para aqueles que têm pequeno repertório em história da arte, o que contará é a imagem criada pelo ilustrador, e quase todas traduzem o apresentado no verbal de maneira próxima do literal. Leitores que navegam com mais facilidade na tradição artística poderão desenvolver imensa curiosidade sobre qual artista e quais de suas pinturas definiram o rumo da ilustração. No final, as correlações entre as imagens do passado e as novas são dadas para o leitor em necessário paratexto.
Gravidez – Vamos à trama: o garoto adotado sente-se inseguro com a chegada da futura irmã, pois a mãe está grávida. Sonhando, ele recupera memórias da infância passada ao lado da irmã biológica, Ayosha. Quando o verbal fala da guerra, que destroçou a aldeia deles, a imagem evoca "Guernica", de Pablo Picasso. Eles caminham por muito tempo, enfrentando a fome, até que um homem arrasta a menina para longe dele. Interno em orfanato, Kitoko foge e deseja viver em lugar mais acolhedor – é quando cena idílica, típica dos traços de Marc Chagall, ocupa a página. Feito miragem, ou à semelhança de cenas registradas por Salvador Dali, Ayosha regressa para ajudá-lo. Reencontram-se em meio à paisagem inspirada em Paul Gauguin. Mas ela se apresenta diferente, pois não possui “a pela escura/ e não tem os lábios grossos”.
Além da riqueza de vozes presentes na narrativa condensadas pelo narrador e da coesão obtida no uso de imagens tão díspares, Franck e Nauwelaerts, ao colocarem a visão de um garoto negro com receio de ganhar irmã branca, invertem leitura tradicional do tema do preconceito. E o fazem falando diretamente sobre a questão em apenas um momento, envolto por atmosfera poética. O sussurro da mãe biológica, também evocada no sonho, provoca Kikoto e, por extensão, o leitor ao indagar: “você quer uma nova irmã do jeito que ela é ou está à procura apenas de uma pele negra como a sua?”.
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