Mari e as coisas da vida, na seleção feita por Graça Ramos, de livros que tratam da morte Publicado em: O Globo - Março de 2015
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Fui surpreendida por uma série de livros que tratam da morte. Persistente e pertinente, o tema pontua a tradição literária infantil – é só lembrar quantos personagens dos contos de fadas são órfãos –, mas a coincidência de tantas narrativas articuladas em torno do assunto me fez pensar se as famílias contemporâneas estão deixando que livros respondam às perguntas feitas pelas crianças a respeito do morrer. Se, no passado, a morte era apenas referenciada dentro de narrativas de conteúdo mais amplo, deixando ao leitor o exercício da curiosidade sobre ela, agora parece que há uma necessidade geral de tentar exaurir o tema.
Mesmo sendo temáticas, as narrativas analisadas expõem dificuldades que muitos adultos podem ter ao explicar para uma criança a única experiência inevitável. Como no mundo real, onde cada família constrói uma versão sobre o que é o morrer, a ficção também apresenta cardápio variado de escolhas. Literariamente, algumas obras surpreendem pela vivacidade do discurso, mas de modo geral quase todos os livros avaliados padecem de um problema – que talvez reflita a própria questão dos autores sobre o que abordam – que é o da dificuldade de criar um clímax compatível com o desenrolar da trama.
Um dos textos assemelha-se a manual de autoajuda sobre como preparar crianças para superarem a “partida definitiva” do animal de estimação, sem se referir jamais à palavra morte. Outro apresenta curiosas e afetuosas narrativas centradas no jogo vida-morte, mas, no final, fantasia sobre um não-lugar maravilhoso, nas nuvens, onde impera o acolhimento. Há ainda a retomada de antiga história popular, com a construção de um final onde a morte aparece de maneira abrupta, como na vida real às vezes ocorre, mas que no texto ficou pouco elaborado. Em somente um dos livros, a morte é tratada como algo natural, parte do processo de existir e do deixar de ser, sem possibilidade para o além daqui. Porém, essa história transcorre muito apegada ao real, com reduzidas possibilidades imagéticas.
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Existências – Em Mari e as coisas da vida (Pulo do gato), com texto de Tina Mortier e ilustrações de Kaatje Vermeire, autoras premiadas na Bélgica, a garota que dá nome ao título tem grande apego à avó idosa. Elas se comunicam intersubjetivamente e, quando a ancestral adoece, a menina é a única a entender o sentido de seus sons, que se revelam linguagem. No meio do percurso, o avô morre inesperada e silenciosamente. A garota ajuda a avó a se despedir do companheiro. Embora abra com uma linda imagem poética – a menina nasce em uma cadeira de palha colocada abaixo de uma cerejeira, enquanto a mãe lê um livro –, a narrativa apresenta poucas metáforas. As ilustrações, também no exercício reiterativo, acompanham a delicadeza do texto, que navega em direção à morte sem sobressaltos. Em formato vertical, de largura expressiva, o livro transmite ao leitor a sensação de que morrer se resume apenas a uma etapa que se encerra, geradora de dor e sofrimento, mas que não impede os que ficam de seguir o curso de suas existências.
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Cada um de nós convive com a ideia da morte conforme nossas vivências, ensinamentos ou crenças. Como vimos ser amplo também o leque de narrativas sobre o tema destinadas aos mais jovens, só recomendo aos mais experimentados na arte de ler que respondam de maneira sincera às crianças que indagam sobre o tema. As respostas poderão ser cruciais para sua compreensão da vida.
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