Eu quero contar uma história de morte para vocês, mas sei que se eu disser assim "história de morte" vocês irão dizer que é melhor contar outra porque história de morte é triste demais, além de sobrar comentários dizendo que morte nem dá boa história. - Site ABCD MAIOR - 28/06/2012 Publicado em: Site ABCD MAIOR - 28/06/2012
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Eu quero contar uma história de morte para vocês, mas sei que se eu disser assim "história de morte" vocês irão dizer que é melhor contar outra porque história de morte é triste demais, além de sobrar comentários dizendo que morte nem dá boa história.
Mas acontece que eu realmente acho que história de morte é a melhor história da vida, ela toda é um livro, talvez uma coletânea, quiçá melhor volume ou uma biblioteca inteira.
Sem subterfúgios de costume, as histórias de morte que tecemos é a história das nossas próprias vidas.
Hoje, durante o café da manhã, vi surgir lágrimas nos olhos da amiga quando eu disse, reunindo esforços nos meus conhecimentos sobre a mitologia indiana, que Shiva devasta semeando vida. A vida nunca se interrompe e nós, por conseguinte, seguimos no eterno quando nos percebemos parte deste todo.
Esta semana, em minhas mãos, um livro ilustrado com elegância invejável, transbordante de delicadeza, excelente leitura já no correr das primeiras linhas:
“Mari nasceu em uma cadeira de palha, debaixo de uma cerejeira.”
“Fez força e empurrou e esperneou até que, de repente, lá estava ela.”
O nascimento de Mari fez com que eu me lembrasse desta força imperiosa da vida que é a mesma força na morte.
Certa vez, lá nos altos do Piauí, andando sozinha pela praia, digo sozinha mesmo sem nenhum ser humano a ser avistado por mim nas próximas horas, tive os olhos mareados olhando as ondas baterem nas pedras, derramarem sal na areia, sendo novamente sugadas e conduzidas para o fundo num moto contínuo. Eu me senti pouco, quase nada mesmo, diante daquele mar imenso que estava ali antes de mim, antes dos meus pais, antes dos meus avós, antes do meu país ter um nome, antes de muitas páginas do livro de história.
Percebi a fragilidade em mim. Depois pensei que um dia eu estaria adiante enterrada em um pedaço de terra que o mar lambe e que, de alguma forma, eu pertenceria à terra e ao mar e seria plantas, galhos, mar, sal e ondas.
Mari me levou de volta aos pensamentos de morte que são regados da mais pura razão de viver. Sobretudo o movimento, a inquietação, a liberdade de correr pelo jardim inteiro, da cerejeira ao portão, ao redor do lago e, depois, tudo de novo. A vida também não pede licença, nem cessa movimento, faz tudo de novo.
A fome de Mari e o gosto pelo afeto quando ele se desmancha doce na boca conduz uma encantadora passagem pela existência humana.
Mas as coisas da vida também se complicam algumas vezes e, tanto no nascer de um bebê quanto no desabrochar de uma flor, as coisas menos agradáveis surgem de repente e sem pedir licença pra gente.
“Alguém poderia me explicar o que está acontecendo por aqui?”
Voltando ao papo com a amiga no café da manhã, também aquele mar enorme me devorando no litoral piauiense, entre uma xícara de café e um pão com manteiga que perfumava nossos arredores, eu disse algo assim:
- A vida é este movimento de mar batendo nas rochas e avançando para tomar tudo e depois devolver diferente. Podemos olhar o mar de fora ou mergulhar logo entre as ondas. Talvez se passarmos mais tempo observando a gente se machuque menos. Talvez mergulhando logo saibamos mais sobre o comportamento do mar, também dos esfolados nas conchas. Mas é certo dizer que o mar virá para tomar tudo, tão de repente como deve ser, sem pedir licença nem nada. É certo dizer que ele levará a todos com seu movimento de ir e vir. É certo também que somente no mar saberemos do acolhimento das águas, da sua temperatura, do gosto do sal e do sol brilhando nossas faces entre os saltos ornamentais dos peixes.
Não pude deixar de derramar lágrimas com Mari, enquanto pensava nas boas histórias de morte que se passam ao longo da nossa vida. Cada lágrima uma morte de um pedaço menos sensível cedendo lugar a um pedaço de coração amplo.
Em tempo, sobre a obra: “Mari e as coisas da vida”, de Tinbe Mortier e Kaatje Vermeire, Editora Pulo do Gato, de São Paulo.
(Penélope Martins)
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